A portuguesa que trabalha com o Nobel da Química para mudar o mundo
Depois de ter inventado a bateria de lítio, John Goodenough, agora galardoado com o Nobel da Química, sonha com uma bateria ainda mais potente e sustentável – graças ao trabalho de Helena Braga, que descobriu a fórmula que a comunidade científica perseguia há décadas. Quem é a física do Porto no centro da investigação americana que pretende colocar o sol e o vento no lugar do petróleo e conseguir que os carros elétricos dominem o mercado mundial?
Helena Braga ignorou o conselho de Andrew Murchison para não apresentar os resultados daquela experiência. “Ele vai pensar que és maluca”, avisou-a o americano, parceiro de investigação no Texas. “É desta que te manda de vez para Portugal.”
“Paciência”, pensou a física portuguesa, professora na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. “Não vou estar aqui a mostrar só o que é normal.” As viagens de uma semana aos Estados Unidos eram já uma rotina naquele ano de 2015 e, como disse um dia Isaac Newton, “nenhuma grande descoberta foi alguma vez feita sem um palpite ousado”. Aquele que a cientista se preparava para partilhar, em nova reunião de trabalho com John Goodenough, na Universidade de Austin, era só o mais recente. “Esses resultados acabaram por ser os primeiros que publicámos num artigo em conjunto”, conta Helena Braga, via Skype, a partir do Texas. Em vez de dispensada, assentou por lá, sempre em colaboração direta com “o mestre”, que a nomeou investigadora principal de um projeto com ambições de revolucionar o consumo de energia no mundo. A inovação que faltava, acreditam, para o sol e o vento poderem disputar o lugar do petróleo, gás natural e carvão como principais fontes de energia na rede elétrica. E para os carros movidos a eletricidade passarem a dominar a indústria automóvel.
A descoberta é tão promissora que este americano nascido na Alemanha volta a ser apontado, aos 94 anos, como candidato ao Nobel da Química, depois de ter lançado, em 1980, a semente da era tecnológica em que vivemos, ao criar a bateria de iões de lítio. A nova receita anuncia agora um segundo salto tecnológico, com Helena Braga no centro da investigação. “Os seus contributos para os nossos debates e o seu trabalho no laboratório são o coração do que fazemos”, salienta Goodenough à VISÃO.
Talvez soe mais familiar o termo “bateria recarregável”. Dessas que todos usamos, a maioria no telemóvel, mas também no computador portátil, no tablet, no leitor de música, nas máquinas de fotografar e filmar, no GPS e até no cigarro eletrónico ou no hoverboard, o novo veículo-brinquedo que é uma espécie de mistura entre skate e segway. São as baterias de iões de lítio que dão vida a estes equipamentos sem fios – e não só. Alimentam aviões e carros elétricos. Estão por todo o lado. No topo da pirâmide do seu enorme potencial, permitem armazenar energia solar e eólica, embora com um (grande) senão: os custos elevados e a capacidade reduzida travam a sua comercialização em larga escala.
UM NOVO MUNDO
Há 20 anos que se procura ultrapassar este problema. A urgência é tal que a Tesla, a gigante americana na vanguarda dos carros elétricos, não esperou mais tempo e avançou para o mercado das energias renováveis recorrendo a milhares de baterias de iões de lítio, associadas a duas centrais solares: agrupadas em áreas equiparáveis a campos de futebol, estão já a funcionar na Califórnia e no Havai, como pequenas reservas da rede elétrica capazes de responder a necessidades urgentes – sejam picos de consumo ou falhas momentâneas na distribuição tradicional. A AES, empresa produtora e fornecedora de energia com sede nos EUA, também já havia lançado, em 2011, um projeto semelhante, mas dedicado à energia eólica. São casos pontuais, que obrigam a investimentos avultados para escassa acumulação de energia.
E se uma nova geração de baterias, com uma arquitetura diferente, pudesse mais do que triplicar a capacidade de armazenamento e, como bónus, ter custos mais comportáveis? Eureka! É esta a solução apresentada por John Goodenough e Helena Braga. Abre-se a porta para “aumentar drasticamente” a autonomia dos carros elétricos – a maioria só circula cerca de 200 quilómetros de cada vez – e torná-los competitivos, também no preço, face aos que usam combustíveis fósseis. Ganha também realismo a ambição de armazenar um grande volume de energia renovável, até aqui impossível. É um novo mundo que se projeta, mais sustentável e amigo do ambiente. Para o americano, o último desafio “antes de morrer”, como o próprio assume. Para a portuguesa, a oportunidade de fazer a diferença.
“Desde que cheguei aqui, o professor Goodenough sempre falou nisso”, conta a investigadora, nascida no Porto há 45 anos. “Tenho um filho e obviamente que quero deixar-lhe um planeta, mas nunca pensei que pudesse contribuir de alguma forma. Se acontecer será uma honra. Principalmente saber que posso contribuir para melhorar a vida de crianças em certos sítios do mundo onde nem sequer há luz.”
O VIDRO QUE TUDO MUDOU
Um acaso. Assim encara Helena Braga o desfecho daquela feliz combinação de materiais, em busca de um condutor de energia (ou eletrólito) sólido, componente-chave para desbravar novos caminhos na evolução das baterias e resolver a principal complicação da tecnologia de iões de lítio: o perigo dos curto-circuitos, que tanto podem afetar telemóveis (no início deste ano, a Samsung retirou do mercado mais de 2,5 milhões de exemplares do Galaxy Note 7, que rebentavam até nos bolsos das pessoas) como já provocaram incêndios e explosões em carros elétricos, aviões e, sobretudo, hoverboards.
O risco decorre do facto de as baterias atuais apenas funcionarem com um eletrólito líquido. Ao analisar os dados obtidos em 2014 no Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), a cientista ficou surpreendida. Depois de expor a mistura química a diferentes temperaturas, ela e o seu colega de investigação Jorge Amaral chegaram à conclusão que estavam perante um vidro de características únicas: o primeiro eletrólito sólido imune a curto-circuitos e capaz de operar à temperatura ambiente. “Não fazia a menor ideia de que era essa a solução”, admite Helena Braga. Nem ela nem ninguém. Quando a revelaram na publicação científica Journal of Materials Chemistry, a novidade ganhou eco lá fora. E Andrew Murchison, investigador da Universidade de Austin, deslocou-se a Portugal para negociar a patente e a levar para a América, numa parceria com a FEUP e o LNEG. De caminho, convidou Helena Braga a visitar as instalações no Texas e a conhecer John Goodenough.
Para explorar um novo conceito de bateria a partir do eletrólito sólido, a professora da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) precisava de uma caixa de luvas – câmara isoladora que permite extrair todo o oxigénio do interior e manipular em segurança metais altamente inflamáveis, como o lítio, através de luvas embutidas no equipamento. Uma vez que não tinha nenhuma à disposição em Portugal, o laboratório em Austin depressa se tornou o local de trabalho perfeito: a distância não a impede de, “quase todos os dias”, através do Skype, discutir as experiências com a sua equipa em Portugal (a Jorge Amaral juntou-se Joana Espain, da FEUP); e Goodenough, o sábio americano, encontra-o num gabinete ali ao lado. “Ela trouxe para o Texas um novo vidro que preparou em Portugal, e o nosso diálogo para o desenvolvimento das suas propriedades, tendo em vista uma nova versão de baterias recarregáveis, tem sido extremamente produtivo”, enfatiza o veterano.
Há mais ideias a testar no laboratório – “entretanto mudámos outra coisa, que não posso dizer qual é, e a corrente era muito elevada, o que nos dá grande esperança para podermos melhorar ainda mais”, adianta-nos Helena Braga –, mas a descoberta já anunciada (e patenteada) está agora a ser negociada com mais de 50 empresas, a quem cabe desenvolver a tecnologia e adaptá-la a cada possível utilização, para então se iniciar a produção em série. “O nosso papel não é otimizar uma bateria até ao fim, de forma a que a indústria só faça exatamente como nós fizemos”, explica a portuguesa. “Somos investigadores e o que queremos é fazer uma variedade para se perceber qual o caminho mais interessante.”
Na investigação, cada modelo é único, feito à mão, “como uma peça de artesanato”. São exemplares mínimos, tipo botão, idênticos às pilhas que se usam em balanças ou calculadoras digitais. Nada dá mais gozo a Helena Braga, que diz só ter começado a “saborear” a ciência uns anos depois ter acabado o exigente curso de Física, em 1993, na Universidade do Porto. Agora quer desfrutar ao máximo. E por sentir que há mais a fazer no Texas, não sabe quando regressará a Portugal, onde permanecem o filho e o marido. Helena nunca tinha ficado tanto tempo longe do seu núcleo familiar. Em 2008, mudaram-se todos para o Novo México para ela se dedicar, por três anos, a uma investigação com pilhas AA e outras da mesma ‘família’, no Neutron Science Center de Los Álamos.
‘UM POUCO MAIS DE AZUL’
O interesse por esta área foi outro fruto do acaso. Para o explicar, cita um poema do espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino, se hace el camino el andar. Al andar se hace el camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar.” Não é estranho que recorra ao idioma original nem que se reveja neste verso. O marido é mexicano e conheceu-o seguindo por caminhos improváveis. Andava à procura de um quadro, lembrou-se que a mãe havia comprado um no México, um par de anos antes, e guardara o cartão de visita do artista plástico autor da obra; enviou-lhe um e-mail e recebeu um convite para uma exposição. Começaram a corresponder-se, “sem interferência da imagem um do outro”, até que ela o desafiou a conhecer a Invicta. Nunca mais se largaram, mesmo que não estejam fisicamente juntos desde o último Natal, celebrado em família no Texas. Depois disso, Donald Trump tomou posse e Helena não quis arriscar sair do país e não poder voltar. Agora, acredita, “as coisas já estão a acalmar”. Tanto assim que aceitou o convite para participar numa conferência em Lisboa, a 23 de junho, organizada pela Ordem dos Engenheiros e a Sociedade Portuguesa de Materiais. Será uma estada curta deste lado do Atlântico, mas suficiente para matar saudades e saborear também o seu renovado laboratório no Porto – já equipado, agora sim, com uma caixa de luvas.
Quando regressar a Portugal de vez, a investigadora vai poder voltar a ouvir música enquanto circula pelo laboratório, como tanto gosta. Em Austin, só o faz de auscultadores, por não querer impor o seu gosto musical aos colegas, na maioria chineses, aos quais se junta, em certos dias, Andrew Murchison, o americano que a iniciou nesta aventura. Para torná-la possível, recorreu ao regime de licença sabática durante seis meses, o máximo permitido por lei, e depois à equiparação a bolseiro, como já havia acontecido em Los Álamos, “sem encargos para a FEUP ou a Segurança Social”. É a Universidade de Austin que subsidia a sua presença nos EUA.
Por cá, como professora universitária, lecionou “todo o tipo de físicas dos dois primeiros anos de engenharia”. Começou a dar aulas em 1996, ainda não tinha o doutoramento, durante o qual estagiou, durante seis meses, na Universidade de Grenoble, em França. O fascínio pela Física surgiu pelos “15 ou 16 anos”, depois de ler a obra Um Pouco Mais de Azul, do astrofísico Hubert Reeves. Decidiu escrever-lhe uma carta, na qual expôs dúvidas sobre entropia, e a resposta deixou-a “derretida”: o franco-canadiano prometeu que esclareceria as questões no livro seguinte, enviou-lhe o mais recente traduzido em português e convidou-a para uma conferência em Aveiro. Na sua “inocência”, como agora lhe chama, fez-se luz sobre uma indecisão crítica na adolescência: “Oh meu Deus, se todos os físicos são assim tão simpáticos, eu quero ir para Física.” E foi.
Começam a ser demasiados acasos, mas o mundo da ciência é propício a coincidências. Veja-se as palavras de Goodenough ao New York Times, a propósito do vidro made in Portugal que acelerou a sua demanda por um planeta mais limpo: “Precisamente no momento certo, quando eu estava à procura, entrou pela minha porta”. E vinha daquela terra onde “chovia muito e pessoas de pés descalços conduziam bois por caminhos cheios de buracos”, como descreve a Ilha Terceira que conheceu, na II Guerra Mundial, enquanto meteorologista das Forças Armadas americanas. Nem ele estava destinado a prever o estado do tempo nem a cientista desse tal recanto na Europa apresentava ideias tão loucas que justificassem recambiá-la para casa.
JOHN GOODENOUGH: A REFORMA PODE ESPERAR
Tem mais do dobro da idade de Helena Braga, mas John Goodenough passou a vida a contrariar preconceitos e a ignorar a data de nascimento (25 de julho de 1922). Aos 12 anos, ainda não sabia ler (era disléxico); aos 24 foi avisado por um professor que era tarde para se iniciar em Física; aos 57 criou as revolucionárias baterias de iões de lítio; e aos 94 surge com outra inovação de implicações globais. Não há dia em que falte ao trabalho na Universidade de Austin, no Texas. Foi ali que o acolheram, em 1986, depois de Oxford, onde criou a tecnologia de iões de lítio, o ter dispensado. Sugeriram-lhe que estaria na hora de se reformar, mas ele tinha outros planos. Para acabar com a dependência do petróleo e evitar conflitos mundiais, não podia parar tão cedo. O projeto começou a desenhar-se na década de 70, impulsionado pela crise que dificultou o acesso dos EUA ao ouro negro (devido ao apoio a Israel no conflito com o mundo árabe). Goodenough trabalhava no MIT, no desenvolvimento dos computadores que permitiram, por exemplo, criar o primeiro sistema de defesa aérea dos EUA. Dessas pesquisas nasceram também as memórias RAM. Por ter dado vida a tantos aparelhos portáteis, com a invenção das baterias recarregáveis, recebeu de Barack Obama, em 2013, a Medalha Nacional da Ciência. Nunca chegou ao Nobel, o que muitos veem como uma injustiça. “Espero que seja desta, ele já o devia ter ganho”, frisa Helena Braga. Se acontecer, fintará de novo a “lógica” da idade. A academia sueca não premiou ninguém com mais de 90 anos.
(Artigo publicado na VISÃO 1267, de 15 de junho de 2017)
Fonte: Visão