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BRISTOL: UM SEGREDO CULTURAL À BEIRA-RIO

Localizada no sudoeste de Inglaterra, Bristol é uma cidade aberta ao mundo. Durante um certo período foi o maior porto da Grã-Bretanha, no início do século XX tornou-se pioneira da indústria aeronáutica, o que levou, passadas poucas décadas, ao fabrico do Concorde. Em 2016. A cidade votou por larga maioria contra o Brexit.

Texto e fotografias de José Luís Jorge

O mundo, pelo menos uma boa parte dele, circula nas ruas de Bristol. O Império Britânico está aqui: indianos e paquistaneses, África de várias latitudes, o Médio Oriente. Os chineses têm a sua Chinatown, ou, anseiam por isso; quanto a europeus continentais, encontramos de tudo, embora só os polacos constituam algo semelhante a uma comunidade.

Em Bristol, como por todo o lado aliás, as pessoas arrumam-se por origem nacional, grupo social, religião e, o mais das vezes, por cor. (Assisti a um improvisado jogo de críquete, em Castle Park, no coração da cidade, e todos os jogadores eram de origem indiana.) Não é de agora a propensão da cidade para captar gente de longe. Um dos bristolians mais reputados não é natural da cidade, nem tampouco inglês, mas toda a gente, em Bristol, sabe que foi John Cabot quem, em 1497, descobriu a América. (Talvez possamos falar em «chegada», dado que o continente americano já era habitado.) Cabot, afinal Giovanni Caboto, era italiano mas comissionado por Henrique VII de Inglaterra, realizou a viagem que lhe daria a posteridade, abrindo caminho para a colonização europeia da América do Norte.

Hoje encontramos o navegador, a sua estátua, à beira do antigo porto — de onde se lançou à aventura —, sério, resoluto, o olhar à procura de horizontes largos. Mas a apropriação — que também podemos considerar identificação — do navegador, natural de Veneza, por parte de Bristol, é genuína e abrangente. O mais portentoso centro comercial da cidade — obra do século XXI —, o qual, em termos de consumo, oferece praticamente tudo o que a globalização produz, chama-se Cabot Circus Mall, nome escolhido pelos bristolians através de voto. Antes disso, por subscrição pública, fora construída a Torre Cabot — obra do século XIX —, a fim de «(…) comemorar o quarto centenário da descoberta da América do Norte, em 24 de Junho de 1497, por John Cabot, que navegou desde o porto de Bristol (…).» Localizada em Brandon Hill, o ponto mais elevado da cidade, lá no alto, a torre sobe 32 metros acima do solo, temos uma vista previsível, mas muito compensadora.

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    [Imagens: José Luís Jorge]

Em termos de grandes horizontes, em Bristol, só as viagens de balão se lhe comparam, ou, provavelmente, superam. É frequente ver estes gigantes silenciosos a sobrevoarem a cidade. Certamente será algo memorável para quem segue no cesto — quais personagens de uma peripécia de Júlio Verne —, mas observados do solo também põem as pessoas com olhos voltados para o céu. (Todos os anos, o Bristol International Balloon Fiesta atrai balões de ar quente de todo o mundo.)

Bristol tem dado muito ao mundo. Noutro quadrante que não o da navegação — mas sem perder de vista o mar —, ocorre- -me falar de dois livros. Num famoso pub da cidade Daniel Defoe conheceu Alexander Selkirk, o marinheiro escocês que passou quatro anos numa ilha deserta, o lastro de Defoe para compor Robison Crusoé, transformando o jornalista e panfletário em escritor. O mesmo Llandoger Trow serviu de modelo a Robert Louis Stevenson para a estalagem do Almirante Benbow em A Ilha do Tesouro.

John Cabot, aliás Giovanni Caboto, navegando a partir de Bristol,alcançou a América do Norte em 1497. Hoje encontramos a sua estátua à beira do antigo porto.

Passei pelo Llandoger Trow, a primeira vez, num final de tarde quente, sol aberto exigindo roupas leves e bebidas frescas. A esplanada defronte, ocupada com robustas mesas de madeira, estava à cunha. Muitas conversas; quem sabe se alguma chegará um dia ao enredo de um romance. Embora na rua me cruzasse com gente de todos os quadrantes, os ingleses dominavam por larga maioria. É assim no Llandoger Trow, é assim nos demais pub’s da cidade. (É sabido da abrangente e primordial importância do pub na vida social britânica. Entrar num pub e pedir um pint de cerveja, ou uma refeição ligeira, dá-nos a impressão de partilharmos da vida local.)

Vamos continuar por perto, ou seja a bordejar o Canal Feeder, o qual permite a ligação do centro da cidade ao rio Avon. A parte meã, ou seja o antigo porto, está pejada de pequenas casas flutuantes, barcos adaptados a residências. o Canal tem as suas rotinas: durante parte do dia é tão liso como uma piscina sem nadadores mas ao final da tarde é tomado por um sortido de embarcações, algumas à vela, a maioria a remos, manobradas por entusiásticos atletas de ambos os sexos. Afinal existe uma dezena de clubes náuticos na cidade. É também por essa hora, depois da jornada de trabalho ter ficado para trás, que muitos bristolians, sempre que o clima colabora, colonizam as margens para descontraídos encontros. Uma postura que revela um prazeroso sentido da vida.

Em Bristol abundam pinturas murais onde cabem todos os temas.Banksy, figura mistério e nome maior da street art é natural da cidade.

Mas aqui, neste trecho outrora visitado por barcos que percorriam os sete mares (ativo até 1975, porto de Bristol foi transferido para a foz do rio Avon), dominado por estivadores e guindastes (continuam à vista alguns, defronte do M Shed, um centro interpretativo que ocupa antigas instalações portuárias, onde se explica a dinâmica social, económica e cultural de Bristol ao longo do tempo), encontra-se uma peça extraordinária.

O SS Great Britain foi o primeiro navio transatlântico com casco de ferro e uma hélice propulsora. Lançado à água em 1843, a bordo viajaram anónimos e famosos, transportou passageiros para a América, emigrantes para a Austrália, soldados para duas guerras e recebeu carga a granel. Finalmente, depois de ter percorrido mais de um milhão de milhas náuticas e ter completado 32 voltas ao mundo, foi abandonado nas ilhas Falkland, na década de trinta do século XX. Todavia um barco que ganhara por direito próprio o estatuto de mito não merecia ser esquecido. Após um resgate audacioso, o SS Great Britain voltou à doca onde fora construído, 127 anos depois de a ter abandonado pela primeira vez.

Mas o SS Great Britain é indissociável do seu artífice: Isambard Kingdom Brunel. Engenheiro de notável inteligência, audaz, obstinado, Brunel representa como poucos as gloriosas novas tecnologias do século XIX: o vapor e o uso do ferro. O barco, com a sua forma esguia mas simultaneamente de grande arcaboiço, impressiona. Visitá-lo é uma aula ao vivo. A bordo, guias voluntários, normalmente senhores de cabelos brancos e barbas grisalhas, vestido a rigor, garbosos amantes da história marítima inglesa em particular, e, creio, amantes da Inglaterra em sentido lato, respondem a perguntas sobre isto e aquilo (incluindo as suas vestimentas, cópias de modelos coetâneos do SS Great Britain), embarcam em longas conversas, conforme as circunstâncias.

Depois de bolinarem pelo SS Great Britain (sim, o barco é suficientemente grande, permite esse exercício) os visitantes são encorajados a visitar a exposição Being Brunel, logo ao lado. Salas com design apropriado, documentos e instrumentos técnicos, um pouco de multimédia, permitem um olhar em grande angular pelo percurso do homem, do visionário e artista, do engenheiro, cujas obras, linhas férreas, túneis, pontes, docas e barcos alteraram a paisagem da Inglaterra vitoriana.

A ponte suspensa de Clifton é utilizada por veículos motorizadosmas também por ciclistas e peões. O tabuleiro tem mais de 200 metros.

Podemos confirmar isso mesmo, avançando um pouco rio abaixo, até Clifton: ali o génio de Brunel cujo lema pessoal era «En Avant» («Para a Frente»), manifesta-se na Ponte Suspensa de Clifton. Inevitavelmente, é procurada por todos quantos visitam Bistol. É da natureza humana fazer associações. O mais das vezes o processo é automático. A Torre Eiffel e Paris, a Acrópole e Atenas, a Estátua da Liberdade e Nova Iorque. Uma coisa puxa a outra. Estes enlaces são tão naturais para os habitantes de Paris, Atenas ou Nova Iorque, como para quem vive em lugares distante dessas cidades.

A Bristol cola-se a imagem da Ponte Suspensa. Sem contestação, é o ícone da cidade. Mas ei-la: dois sólidos pilares em forma de torre afastados mais de 200 metros um do outro e no meio, flutuando sobre o vazio, o tabuleiro. Flutuando é uma maneira de dizer. A plataforma, com pistas independentes para carros, bicicletas e peões, é sustentada por um par de robustos tirantes. No fundo, 76 metros abaixo, apertado entre ravinas verticais, desliza o barrento Avon. A ponte, por si só é uma maravilha, mas a natureza ajuda a que o lugar se torne inesquecível. Fazem-se muitas fotografias ali; individuais, de grupo, selfies. Há quem peça auxílio na execução desse exercício de fixar instantes. A mim calhou-me ser abordado por uma jovem chinesa de Xangai. Há poucos anos uma raridade, os visitantes vindos da China, já nos habituamos a eles.

Antes de abandonar o local, li uma placa afixada num dos pilares e que nos dá a medida da dificuldade e complexidade da obra. Diz o seguinte: «Esta ponte foi projetada em 1830 por Isambard Kingdom Brunel. A construção começou em 1836 mas foi interrompida em 1843 por falta de fundos sendo necessário esperar até 1864, cinco anos após a morte de Brunel, para o término das obras (…).»

Uma cidade aberta à experimentação e à inovação. Parece-me uma boa maneira para descrever Bristol. Ter sido durante um certo período o maior porto da Grã-Bretanha, logo uma cidade com forte propensão mercantil (é um facto cristalino que certos empreendimentos desenvolvidos pelos negociantes locais não eram recomendáveis. O comércio de escravos foi um dos fatores da riqueza de Bristol) tem certamente algo a ver com as idiossincrasias bristolianas. No fim de contas, um lugar também exprime tudo o que aconteceu dentro dele.

Lançado à água em 1843, o SS Great Britain foi o primeiro navio transatlântico com casco de ferro e hélice propulsora. Em doca seca, é uma das grandes atrações de Bristol.

Como tal, deixando a Ponte Suspensa de Clifton para trás, e progredindo no tempo e no espaço, surge agora a Queens Road, nº 67, onde William Friese-Greene, nascido na cidade em 1855, teve estúdio de fotografia. Friese-Greene foi um pioneiro da fotografia e do cinema, enriqueceu com as suas invenções mas, no final, morreu pobre. Estamos num ponto fulcral de Bristol, uma confluência de ruas e dali são dois passos até à universidade, ou até ao Museu da Cidade e Galeria de Arte. (O mesmo se pode dizer do restaurante Brown’s, instalado num antigo edifício público, inspirado no Palácio dos Doges, em Veneza, onde me serviram um lauto almoço.) No museu podemos admirar boa pintura (do Renascimento, holandesa e impressionista), o passado industrial de Bristol (cerâmica e vidro, primordiais durante os séculos XVIII e XIX) e, ainda, uma coleção de artefactos da Assíria e do Egito.

Mas o que surge em primeiro lugar a chamar a atenção dos visitantes é um avião. A British and Colonial Aeroplane Company, instalou-se em Filton, um subúrbio da cidade, em 1910, e após isso a atividade não parou de crescer, ou, dizendo respeito a aeronaves, não parou de subir mais alto. O aparelho em exposição, suspenso a partir do teto sobre o átrio do museu, é uma réplica do Boxkite (o nome certo é Bristol Biplane), um dos primeiros modelos produzidos em série pela nascente indústria aeronáutica. Trata-se de uma máquina voadora rudimentar mas, passadas poucas décadas, em Bristol, fabricava-se o Concorde, o expoente da aviação. E é o último Concorde fabricado, que também foi o último a rasgar os céus — a 26 de novembro de 2003 —, que ocupa o grande palco no Aerospace, um museu que conta os mais de 100 anos de percurso da indústria que puxou Bristol para o futuro.

Em Bristol as paredes falam. Quero com isto dizer que abundam as pinturas murais. Ingénuas, irónicas, políticas, cabem lá todo o tipo de mensagens e temas. Podemos conhecer a cidade de lés-a-lés seguindo de um mural para outro. Há quem o faça. Andava a flanar quando o acaso me levou à conversa com um belga, acompanhado de uma dezena de compatriotas. “Viemos exclusivamente por causa da Street Art. Nada de museus, nada de igrejas.” Estávamos num dos extremos da Leonard Lane, estreita como uma ruela deve ser. De uma ponta à outra, pinturas. A mais comentada e fotografada representava um Donald Trump irado cujas palavras são bombas.

Ativo até 1975, o porto de Bristol foi transferido para a foz do rio Avon. Atualmente domicilia equipamentos culturais e de lazer.

Esta é uma das poucas ruas que conserva o carácter da cidade pré-Segunda Guerra Mundial. Os bombardeamentos da Luftwaffe viraram do avesso Bristol como uma luva. (Ainda assim, vários edifícios dos primórdios da cidade salvaram-se desse fogo vindo do céu. A igreja medieval de St. Mary Redcliffe, obra-prima gótica, é um exemplo.) Isto serve para esclarecer que uma boa parcela da cidade é fruto das décadas de 50 e 60 do século XX, onde a estética crua do brutalismo se impôs. Em ruas contíguas, em diferentes edifícios representativos dessa forma de construir, ou seja despidos de ornamentos, também se instalou a pintura mural. Dado o gosto deste tipo de arquitetura pelo gigantismo, são murais que tendem para o vistoso.

Quem pinta a cidade desta maneira? Muitas mãos, sem dúvida. Porém há um nome que todos pronunciam, embora sejam pouquíssimos os que saibam a sua identidade: Banksy. Figura mistério, as obras que executa são com frequência denúncia, apelo, revolta, reflexão. Uma coisa é certa: é mais um pioneiro de Bristol, apesar de hoje ser um artista global. (Ocorre-me lembrar que em paralelo com a explosão da pintura mural, a música afirmou-se com a elaboração de um género próprio, o Trip Hop, ou «música de Bristol». Diversas bandas contribuíram para isso, Massive Attack e Portishead à frente.)

Volto atrás ao mundo que circula em Bristol, ao mundo que habita Bristol. Num certo ponto da cidade antiga confluem quatro ruas e eu, sempre que por aí passava, detinha-me diante de uma montra. Lá, na esquina da High Street com a Corn Street (uma das minhas ruas preferidas, certamente por nela encontrar a Stanfords Bookshop e o Commercial Rooms, uma livraria e um pub excecionais), localiza-se um estabelecimento que comercializa esplêndidos objetos de vidro. No último dia em que estive na cidade, voltei a olhar a montra e, de seguida, dei três passos até ao interior. Eu já sabia algo sobre a importância que o fabrico de vidro desempenhara na vida local, mas Ivan, o responsável pela loja, foi mais longe ao pôr-me a par das particularidades do Bristol Blue Glass e do Bristol Ruby Glass, merecidamente famosos.

Mas Ivan disse-me mais. Disse-me que encontrara um lugar para viver. “Eu nasci na Bósnia, passei a adolescência em Itália, onde a minha família se refugiou da guerra, depois, ao longo do meu percurso académico, estudei Artes, vivi na Dinamarca, na Alemanha e na China. A Bristol, cheguei há quatro anos e sinto que vou ficar. Afeiçoei-me à cidade pois é acolhedora; basta pensarmos que os bristolians votaram por larga maioria contra o BREXIT.” E é isto, no fundo do coração, o que cada um de nós deseja, um sítio onde se sinta bem a viver.

Fonte: Volta ao Mundo

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