Domingos Piedade: Perdemos um bom amigo
Domingos Piedade é a referência para uma geração que tem pelo desporto automóvel uma verdadeira paixão.
Crescemos a ouvir as suas crónicas e a ver os seus relatos, daquilo que também era uma das suas grandes paixões; o desporto e a indústria automóvel.
Mas para além das suas aparições públicas, existia o Homem e o Amigo, que estava sempre disponível para uma palavra de conforto e incentivo, e que tornava mais exigentes aqueles que profissionalmente com ele tiveram o privilégio de trabalhar.
Conheci o Domingos através dum amigo comum, e creio que poderei dizer hoje que estabelecemos desde logo uma empatia que nos conduziu a querer trabalhar juntos, num projecto (Requalificação do Circuito do Estoril) que muitos equívocos veio a criar, tantas as invejas que conduziram a uma campanha de perseguição pessoal, como tantas neste País, pejado de invejosos e mal intencionados.
Numa hora em que as homenagens póstumas serão também típicas deste País, para mim era importante dar o meu testemunho à integridade e carácter dum Homem, a quem todos os que gostamos do desporto automóvel, tanto devemos.
O seu percurso ímpar no seio do desporto e da indústria automóvel, conduziram-no a conviver e trabalhar com as maiores figuras da elite mundial, promovendo jovens pilotos que se viriam a revelar as maiores estrelas e lendas, e contribuindo também para elevar os padrões de segurança deste desporto tão espectacular.
Teve na Mercedes os mais altos cargos na AMG, departamento de competição da marca, na tão exigente indústria automóvel alemã, o que atesta bem o seu profissionalismo e empenho.
Provavelmente, fruto da sua outra grande paixão, a Ana Paula e os seus Filhos, decidiu regressar a Portugal e aceitar o desafio de administrar o Circuito do Estoril.
Apesar das inúmeras solicitações internacionais, muito melhor remuneradas, acabou por implementar na Administração do Circuito do Estoril uma gestão de exigência e rigor, que permitiram a uma empresa pública passar de crónicos resultados negativos para resultados positivos, e tendo sido o precursor de trazer para Portugal e para o Estoril, os testes de alguns dos principais construtores de automóveis, dando, no anonimato, um contributo decisivo para a afirmação de Portugal como destino de testes de automóveis e para a indústria automóvel nacional um incremento adicional.
Com Domingos Piedade o Circuito do Estoril passou a estar no radar das marcas automóveis, e com o regresso da Moto GP, voltámos a ter no panorama desportivo internacional uma competição, ao mais alto nível.
Na gestão do Circuito do Estoril foi um líder carismático e quem com ele teve o privilégio e a honra de trabalhar deve estar eternamente grato por essa experiência.
Eu tive o privilégio de conviver com Domingos Piedade e foi uma honra trabalhar com ele.
Procurámos desenvolver uma requalificação do Circuito de Estoril, numa fase em que dificilmente se vislumbravam acordos e entendimentos de regime ( o contexto político naquele tempo era de conflito).
Louvor seja feito ao António Capucho, que teve o mérito de nos ouvir, num almoço onde lhe fomos apresentar o primeiro esboço do trabalho de projecto, depois de inúmeras reflexões e conversas, que nos conduziam sempre a querer fazer no Circuito do Estoril uma adaptação ao nível dos melhores circuitos europeus.
Recordo o seu comentário, pleno de humor e boa disposição, quando íamos para o almoço: “Zé Pedro, esquece, o António Capucho nem uma casota para o cão nos deixa lá construir…”
Afinal, saímos do almoço com carta-branca para o trabalho avançar.
Revelando uma integridade invulgar neste país, a preocupação do Domingos Piedade foi depois afastar os “interesses instalados” que rapidamente se revelaram, muito perniciosos e negativos.
Felizmente todos afinámos pelo mesmo diapasão, e o trabalho foi entregue à Faculdade de Ciências e Tecnologia, que sob a coordenação do Professor Miguel Pires Amado, que se encarregou de iniciar a elaboração de um Plano de Pormenor que iria definir novos usos e teria permitido ao Circuito do Estoril uma requalificação plena de oportunidade, afastando todos os interesses negativos.
Infelizmente, todos viemos a abandonar funções, e a requalificação do Circuito do Estoril ficou adiada.
Mas aqui se revelou a idoneidade e o profissionalismo dum Homem que naquela fase da sua vida queria muito contribuir para o progresso do seu País.
Nas inúmeras manhãs que passávamos no seu gabinete, assisti presencialmente a uma chamada telefónica (para a qual ele teve a “ in”delicadeza de colocar em alta voz) do então ministro com a tutela do desporto que o queria convencer a manter-se em funções, apesar das inúmeras solicitações profissionais que recebia do estrangeiro, seguramente muito melhor remuneradas.
Recordo o seu humor e o comentário de que a remuneração que lhe era proposta no Circuito do Estoril ser inferior ao vencimento do responsável da limpeza das instalações da Mercedes AMG.
Para o tentar convencer a ficar, foi-lhe proposto pelo então ministro, de viva voz, que poderia ter um suplemento do vencimento através do plafond do cartão de crédito, atribuído aos administradores.
Quando, anos mais tarde, e numa perseguição pessoal inqualificável, tive conhecimento que estaria a ser alvo dum processo judicial, liguei-lhe a prontificar-me para ser sua testemunha e relatar o episódio da conversa com o ministro, a que assisti.
Resposta pronta do Domingos: “Zé Pedro, agradeço muito a tua amabilidade e disponibilidade, mas estou de perfeita consciência e isso para mim é o mais importante, não vou envolver mais ninguém neste triste episódio!
Se algum outro motivo fosse necessário, esta demonstração releva o seu enorme carácter.
Infelizmente este país é um pântano, e os acontecimentos que se sucederam acabaram por lhe causar grande dor e sofrimento.
Mas as suas memórias, para quem o conhecia realmente, serão sempre a sua enorme generosidade, o seu enorme coração, a sua integridade e o seu carácter.
Domingos, a partir de agora tenho mais um motivo para olhar para o céu azul do Estoril e sorrir, porque sei que em cada nuvem que vir desenhada uma curva, lá estarás tu para nos guiares e incentivar a dar o melhor.
Meu Querido Amigo, um eterno abraço e até sempre!
Fonte: Público