Hidrogénio em Sines “vai ter um impacto maior na economia portuguesa do que a Autoeuropa”
O promotor da iniciativa Flamingo Verde, Marc Rechter, CEO do Resilient Group, revela pormenores sobre o futuro da indústria que vai nascer em Portugal para exportar hidrogénio para o mundo.
pesar de neste momento estar apenas no papel, a criação de uma indústria para a produção de hidrogénio verde em Portugal tem potencial para destronar a fábrica da Volkswagen em Palmela como a maior exportadora nacional, garante o promotor da iniciativa Flamingo Verde (Green Flamingo), Marc Rechter, CEO do ResilientGroup, em entrevista ao Capital Verde do ECO.
O holandês, a viver em Portugal há 20 anos, não hesita em afirmar que “para Portugal é uma oportunidade maior do que a Autoeuropa […] em termos de exportações”.
Com uma reunião entre os governos de Portugal e da Holanda agendada para a próxima semana, em Bruxelas, para debater os próximos passos da iniciativa Flamingo Verde, Marc Rechter desvendou em entrevista ao Capital Verde do ECO mais pormenores sobre o que aí vem.
Qual é o verdadeiro potencial do hidrogénio verde para Portugal?
No futuro, Sines vai poder exportar energia, como se fosse petróleo, mas limpo. Para Portugal é uma oportunidade maior do que a Autoeuropa. Se for bem implementado vai ter maior impacto na economia portuguesa do que a Autoeuropa. E não só em termos de exportações, porque também vai permitir reduzir em 20% a importação de gás natural. Faz sentido, mas não é simples de executar. Tem de ser um esforço colaborativo entre muitos atores de países diferentes, governos e empresas, e temos e manter velocidade.
Para que mercados poderá Portugal exportar essa energia?
Alemanha, Bélgica, Finlândia, Suécia, até para o Japão. Onde quer que já exista um mercado de hidrogénio. Quanto mais rápido criarmos as infraestruturas certas em Sines, mais bem posicionados vamos ficar. Existem muitos mercados diferentes onde o hidrogénio verde terá um papel importantíssimo enquanto fonte de energia descarbonizada. A indústria mundial ainda utiliza hoje o hidrogénio (cinzento, ou seja, ainda poluente) em grandes quantidades, principalmente as refinarias, as indústrias do aço, cimento, vidro, farmacêutica e química. A maior zona química do mundo situa-se precisamente entre o portos de Roterdão [Holanda] e Antuérpia [Bélgica] e a área do Ruhr na Alemanha. Daí surgiu a lógica para começarmos a pensar numa cadeia de valor para o hidrogénio, aproveitando o recurso solar de Portugal. Começámos por identificar uma zona de consumo intensivo de hidrogénio, que terá pela frente o desafio de se descarbonizar.
Bateu primeiro à porta dos governos ou das empresas?
Tenho a grande vantagem de ser holandês e conheço bem o contexto de lá. A ideia é boa, mas requer confiança entre as pessoas. Primeiro fomos falar com as empresas porque sabíamos que era importante criar uma cadeia de valor para o hidrogénio. Tudo o que fizemos desde 2009 não é simples, tivemos de convencer grandes empresas holandesas de que a ideia era válida. Não é algo que uma só empresa vá fazer sozinha. É impossível. É uma estratégia de implementação de uma cadeia de abastecimento. Desde a produção à transformação, transporte e consumo.
Sines tem espaço – 1GW de solar necessário para produzir hidrogénio ocupa 1500 hectares em média –, tem um porto, tem indústria química. Em Sines temos também um ótimo posicionamento geográfico, mas não é o único sítio com potencial na Península Ibérica.
Foi mais fácil falar com as empresas holandesas ou com as portuguesas?
A estratégia tem muitos atores públicos e privados. É um ecossistema complicado. A Holanda já estava muito avançada na sua estratégia de hidrogénio, por duas razões: necessidade de descarbonizar a gigante indústria química, com grandes refinarias da Shell, BP, Total, fábricas de aço e fertilizantes. O Governo holandês identificou o hidrogénio há vários anos como um componente estratégico para o país, para a descarbonização e também a nível económico. É uma grande oportunidade para as empresas holandesas se posicionarem nesse setor na Europa e a nível mundial. As grandes empresas com quem fui falar já fizeram grandes investimentos e na Holanda já existe um plano estratégico muito elaborado ao nível da economia do hidrogénio. Foi fácil falar com eles porque já estão muito avançados. Foi também relativamente fácil convencê-los que Portugal seria um bom país para criarmos uma primeira cadeia de valor europeia.
Sines foi a primeira escolha para montar uma indústria de hidrogénio verde na Europa?
Vejo isto como uma oportunidade ibérica, a nível europeu. Temos de pensar muito bem nas localizações das infraestruturas de produção de hidrogénio. Tem tudo a ver com: onde faz mais sentido colocar o investimento? Sines tem espaço – 1GW de solar necessário para produzir hidrogénio ocupa 1500 hectares em média –, tem um porto, tem indústria química. Em Sines temos também um ótimo posicionamento geográfico, mas não é o único sítio com potencial na Península Ibérica. A nível europeu é necessária uma estratégia integrada para o hidrogénio verde. É isso que se está a discutir neste momento em Bruxelas. Não podemos só olhar para um país produtor e um país consumidor.
Há mais países europeus interessados no hidrogénio verde português?
Neste momento temos uma estratégia Holanda-Portugal mas há mais Europa além destes dois países. O grande objetivo é criar um mercado europeu de hidrogénio verde. Já avançámos na cadeia de valor Holanda-Portugal, agora temos de olhar para os países à volta: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França. Quantos mais Estados-membros estiverem a olhar para isto, melhor. Se nos próximos cinco a dez anos conseguirmos criar várias cadeias de valor entre vários países, através do mar, através de gasodutos, e outras tecnologias, a Europa vai criar um sistema muito forte de auto-produção de energia e mudar radicalmente a sua dependência do gás da Rússia e do petróleo do Médio Oriente.
Depois de convencida a Holanda, foi complicado fazer o mesmo em Portugal?
As empresas holandesas estão muito interessadas porque podem ter mais uma fonte de hidrogénio verde e estamos a trabalhar com elas. Conseguimos convencer o Governo holandês de que Portugal é um bom parceiro para começar a primeira cadeia de valor de hidrogénio na Europa, já que tem tido estabilidade política, promoção das renováveis e desde outubro assumiu hidrogénio verde como prioridade para o país. O Governo holandês percebeu que faz sentido fazermos um trabalho em conjunto. Estamos a falar com o Governo português há dois anos, para identificar o potencial do hidrogénio. Desde outubro, depois das eleições, quando chegámos com uma estrutura já montada na Holanda – com interesse do setor privado e também do Governo — as coisas começaram a andar. Para Portugal há uma grande oportunidade de descarbonização e criação de emprego. Também porque avisámos que é agora ou nunca. Tal como a Holanda é a porta de entrada para a maior zona industrial do mundo, há muitos outros países que também querem o hidrogénio verde. E há muita gente que pode competir com Portugal por ter boas condições para a produção do hidrogénio verde: Itália, Marrocos, Tunísia, Egito, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Chile, Omã, muitos têm recurso solar melhor do que o nosso. A questão é que estamos a criar um novo ecossistema energético europeu que tem a ver com baixar custos e também assegurar a segurança energética. No futuro podemos até importar hidrogénio verde daqueles países, mas primeiro temos de assegurar a nossa cadeia de valor interna europeia, para não estarmos dependentes de terceiros.
Quais são os próximos passos no projeto de trazer o hidrogénio verde para Portugal?
Para a semana haverá uma reunião com os governos de Portugal e Holanda em Bruxelas. Em dezembro realizou-se também na Comissão Europeia o primeiro workshop aberto para a apresentação de vários projetos de hidrogénio, candidatos ao estatuto IPCEI – Important Projects of Common European Interest. A Comissão Europeia vê-nos como um dos projetos mais maduros entre todos os que estão a candidatar-se ao IPCEI. Muito provavelmente vamos conseguir obter o estatuto, mas não podemos desacelerar agora, não podemos ser lentos. Temos de continuar com velocidade para estarmos na linha da frente. Em março, Portugal e Holanda vão assinar um memorando de entendimento, mas só na segunda metade de 2021 as obras de construção poderão começar no terreno, em Sines.
De acordo com o que apresentaram em Bruxelas, há a previsão de 15 empresas envolvidas no projeto. Este número pode crescer?
O número de empresas vai ter tendência de crescer porque não vai ser uma coisa fechada. Para avançarmos com a velocidade necessária e ganharmos o apoio de Bruxelas não podemos ter já à partida 100 empresas na mesa. Com 15 empresas já é um desafio gerir os interesses de cada uma. Depois da autorização de Bruxelas e do acordo entre Holanda e Portugal, muitas empresas vão poder integrar-se na cadeia de valor.
Portugal vai ter hidrogénio verde para exportar e para consumo interno. Mas vai ser possível usar a rede de gasodutos já existente?
A REN também está no processo. Pela informação que temos, conseguimos injetar hidrogénio verde na rede de gás até uma certa percentagem sem haver necessidade de mais investimentos em infraestruturas de transporte e distribuição. Na Europa, a rede de gás é recente e consegue-se injetar até 20% de hidrogénio. Além desse valor, já começa a ser necessário fazer investimentos na rede. Neste momento já há investimentos a serem feitos na rede de gás, o objetivo é que nos próximos 30 a 40 anos a rede de gás natural seja atualizada e melhoradas para ser uma uma rede de hidrogénio verde. Existe a oportunidade para a REN aproveitar a sua infraestrutura para o futuro, para uma nova era. É uma mudança no investimento e uma oportunidade de descarbonizar o sistema energético. Para o abastecimento de veículos, pode-se sempre acrescentar um tanque de hidrogénio nas bombas de gasolina já existentes e passa a existir uma maior rede de postos. Isso implica investimento, mas está a ser feito em todo o mundo. O hidrogénio é uma boa opção nos transportes, mas a infraestrutura ainda tem de crescer, como aconteceu com os carros elétricos, que levaram alguns anos para evoluir e agora estão em flecha. O hidrogénio também tem de fazer essa escalada.
O Porto de Sines também já está preparado para exportar hidrogénio verde em navios para o resto do mundo?
Há dez anos identificámos que o potencial de Portugal e Espanha para exportarem energia renovável era enorme. Mas sabemos que as interligações de eletricidade e gás entre Espanha e França são um ponto fraco e ainda vai demorar muito para ser resolvido. França não tem grande interesse nisso. A forma de aproveitarmos o nosso recurso energético e exportá-lo – tornar Portugal e Espanha, porque vejo isto de forma ibérica, numa região de exportação de energia limpa – vem através do hidrogénio verde. Porque conseguimos produzir, armazenar e transportar o hidrogénio de forma muito mais fácil do que a eletricidade, que exige redes e interligações elétricas. Para o hidrogénio podemos usar as redes de gás já existentes e juntá-lo ao gás natural. Ou transportá-lo em longas distâncias, em navios, depois de liquefeito. No entanto, essa tecnologia ainda vai levar uns anos a chegar ao mercado porque tem alguns desafios técnicos, mas existe o projeto-piloto do primeiro barco para transportar hidrogénio liquefeito. Também pode ser transformado num óleo que absorve o hidrogénio e seguir então por navio, sem riscos.
Neste momento temos uma estratégia Holanda-Portugal mas há mais Europa além destes dois países. O grande objetivo é criar um mercado europeu de hidrogénio verde. Já avançámos na cadeia de valor Holanda-Portugal, agora temos de olhar para os países à volta: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França.
Como reage às vozes críticas que sublinham que no hidrogénio verde é preciso gastar energia – solar – para gerar uma nova energia?
Há muito pouco conhecimento sobre o hidrogénio verde. E ao mesmo tempo há muitos interesses virados para a eletrificação. Há empresas a investir fortemente nesta área. Mas a eletricidade só representa 23% do nosso mix energético. Falta descarbonizar os restantes 77% e não vai ser possível, de todo, fazer isto com a eletrificação. É aí que entra o hidrogénio verde, que pode ajudar a mudar mais rapidamente essa outra parte. Não vejo o hidrogénio como concorrente da eletrificação. Vamos precisar de tudo isto para descarbonizar a economia e criar o crescimento económico necessário na Europa para a reindustrialização do nosso continente. Sou a favor de todas as tecnologias.
Mas todas as energias alternativas às fósseis querem ocupar o seu espaço no mercado.
A ideia é substituir o hidrogénio poluente que já é consumido na indústria por hidrogénio verde. Consegue-se produzi-lo de forma limpa, com eletricidade proveniente do eólico e do solar. O hidrogénio não é uma fonte de energia, é um energy carrier [portador de energia]. Conseguimos armazenar muita energia num volume muito pequeno de hidrogénio. Esta é uma das principais qualidades do hidrogénio. As baterias elétricas também armazenam energia mas têm limitações ao nível do peso, do espaço, das matérias-primas. Não devemos apostar numa só tecnologia para o armazenamento. Temos muitas outras formas e o hidrogénio é mais uma. E das melhores. As baterias perdem energia com o passar do tempo, enquanto o hidrogénio não, porque é um gás. Não perde a sua capacidade energética, nem em dois meses, nem em seis meses ou seis anos. Permite guardar grandes quantidades de energia durante muito tempo. Isto é bom para fazer face à intermitência das renováveis e face às diferenças sazonais no consumo de energia: guardamos quando temos a mais para utilizar quando temos a menos.
Daqui a quanto tempo o hidrogénio poderá ter um papel de destaque no mix energético europeu e mundial?
Ainda temos de criar, e vai levar muitos anos, um novo ecossistema energético, onde constam fatores de produção de energia limpa – eólica e solar. Para mim, dez anos para mudar um ecossistema energético é muito rápido. Há uma aceleração da mudança neste momento, por causa de dois fatores: as tecnologias para o solar e as baterias estão a tornar-se mais económicas do que a alternativa que é obter a energia da rede. Se conseguir energia própria a um custo mais baixo, vou instalar um sistema próprio. Especialmente quando olhamos para as empresas, onde 20 a 30% dos custos são com energia. É uma componente muito importante. As renováveis estão a ficar mais baratas do que comprar eletricidade à rede. As políticas europeias estão a ser implementadas de forma acelerada pelos Estados-membros, o que quer dizer que a legislação está a mudar as regras do jogo. O hidrogénio vai ter um papel cada vez mais importante no novo e emergente ecossistema energético como uma fonte de energia muito flexível.
Como assim? Ainda se sabe muito pouco sobre hidrogénio verde.
Pode ser produzido a partir de fontes renováveis, pode ser utilizado quando quisermos, o que é muito diferente da eletricidade, que produzimos e temos de utilizar logo ou perdemos. Os eletrões não ficam à espera. Ou então armazena-se mas há limitações grandes nas baterias. O hidrogénio também é muito versátil: pode ser utilizado nos transportes, em autocarros ou camiões, barcos. A vantagem face aos veículos elétricos puros é que com hidrogénio é possível andar mais quilómetros e abastecer mais depressa – três ou quatro minutos. O hidrogénio é um energy carrier de alta concentração energética: conseguimos pôr em pouco volume muita energia e é muito leve. O hidrogénio verde também permite produzir amoníaco, que é a matéria-prima principal dos fertilizantes, com destino ao mercado do norte da Europa. E podemos começar a olhar para a produção de etanol e metanol, que vão ser procurados por causa da segunda Diretiva Europeia de Renováveis, que impõe metas de descarbonização dos transportes. Conseguimos produzir etanol e metanol a partir de hidrogénio, incluindo dióxido de carbono.